“Quando foi anunciada a Junta de Salvação Militar, com Spínola à frente; “proclamei” em plena sala dos noticiários que os acontecimentos, tinham todos os ingredientes dum golpe militar e não de uma revolução. Azar o meu, porque nenhum deles, (jornalistas) tinha estado na guerra colonial e muito menos na Guiné de onde eu tinha regressado há tão pouco tempo antes e tinha escutado alguns discursos e histórias sobre o senhor do monóculo e bengalim. Consequência imediata. Fiquei impedido de entrar na sala dos noticiários (até ao precipitar dos acontecimentos internos da RR).” (Carlos Filipe Coelho)
Introdução
Há vários anos que tenho no meu baú algumas memórias de um camarada, infelizmente já desaparecido, que viveu por dentro a “Luta dos trabalhadores da Rádio Renascença”. Conheci-o através da sua companheira, antiga colega de trabalho do Bloco Expresso, a Adélia, que infelizmente também já não está entre nós. Ambos pertencemos à Comissão de Trabalhadores dessa distribuidora livreira que foi engolida na luta partidária entre o PS e o PCP com a Companhia de Seguros Império e a Sociedade Nacional de Sabões à mistura. Nenhum de nós se identificava com aqueles partidos, andávamos pela área da “Esquerda Revolucionária”… O que sofremos até ir parar ao desemprego… Voltando ao assunto: O nosso convívio continuou para além da fase em que existiu o Bloco Expresso e e Luta da Rádio Renascença. No desemprego, chegámos a ter uma “oficina” onde eu e o Carlos Filipe reparávamos rádios e televisores que íamos buscar a Sines para os entregar reparados no final da semana seguinte. Mais tarde continuámos em contacto nos GDUP, na campanha do Otelo a Presidente, e depois na OUT. Aqui ficam algumas memórias e uma homenagem à Adélia e ao Carlos Filipe.
Testemunho
Uma história de vida e uma visão sobre o conflito
“Passados três ou quatro dias de ter alta do Hospital Militar (Lisboa) onde estive internado alguns meses após evacuação da Guiné, recebi uma carta para trabalhar na Radio Renascença, também em Lisboa. Fui aceite como técnico de electrónica depois de alguns dias de estágio. A 16 de Março de 1974, porque não havia repórter de som para uma “cerimónia” ao que entendi na altura tinha sido convocada muito repentinamente, fui enviado a desempenhar aquela função. Nunca o meu corpo teve tanto formigueiro, ao estar na presença daqueles verdugos a renovar vassalagem a Caetano, e todos renovando vontade de perpetuar o regime fascista, principalmente na vertente colonial. Aconteceu o 25 Abril. Noite essa, ou melhor, madrugada essa que ainda não vi descrita com a total veracidade dos factos e actores, dentro das instalações da Rádio Renascença na Rua Capelo. Pormenor este que remeto de momento para o “fundo da caixa”, embora não inatingível. Após o 25 Abril, dentro das instalações da R Renascença, embora não sendo trabalhadores de facto, orbitaram muitos oportunistas, desestabilizadores, doentes infantis do comunismo, controleiros e outros que tais. Até o que é o fugitivo “secretário” de Carlos Cruz, era na altura telefonista; além de alguns trabalhadores mais antigos de Lisboa e Porto que embora imbuídos de conceitos sociais retrógrados, por motivos ocultos aderiram à luta dos trabalhadores. Pesadelo que foi para mim, ainda estava fresquinho de (claras) ideias, pois à parte da minha adolescência, tive alguns anos para ver, ouvir e ler enquanto militar dentro e fora sistema, ver ouvir e comunicar enquanto na Guiné, e dialogando enquanto “hóspede” do Hospital Militar, com outros militares, muitos deles africanos, também evacuados de guerra nas várias colónias. Voltando atrás, eu devia ser um dos muito poucos trabalhadores, que não estava enquadrado naquela altura em nenhuma organização política (e continuo assim, fico bem, obrigado). Não havendo uma partição rígida de sectores nas instalações da RR, os trabalhares circulavam com total à vontade. Quando foi anunciada a Junta de Salvação Nacional, com Spínola à frente; “proclamei” em plena sala dos noticiários que os acontecimentos, tinham todos os ingredientes dum golpe militar e não de uma revolução. Azar o meu, porque nenhum deles, (jornalistas) tinha estado na guerra colonial e muito menos na Guiné de onde eu tinha regressado tão pouco tempo antes e tinha escutado alguns discursos e histórias sobre o Sr. do monóculo e bengalim. Consequência imediata. Fiquei impedido de entrar na sala dos noticiários (até ao precipitar dos acontecimentos internos da RR). Há alguns Senhores, na época “revolucionários trabalhadores” que abandonaram o barco ao primeiro balanço e hoje prestigiados jornalistas e/ou empresários. Outros não tinham suficiente convicção para suportar o aperto da situação (falta de ordenados, horários), de saber descodificar os acontecimentos que se desenrolavam a todos níveis à nossa volta, nem de se imunizarem às influências dos “satélites” (bufos do patriarcado, das organizações de direita dos controleiros partidários e até da CIA. Sim da C. I. A., duvidam ? Lembram-se dum Artur Albarran, era um jovem jornalista, e que há muito tempo é amigo (público) do Sr. Carlucci, ex-embaixador americano em Portugal ?… Os meses foram passando… O Centro Emissor na Buraca em Benfica era (ou devia ter sido) a nossa principal preocupação, naturalmente. Mas ao fim de algum tempo deixou de ter a devida atenção. Éramos três ou quatro que tínhamos a consciência do que se estava a passar naqueles terrenos, onde dormíamos em cadeiras e posteriormente em tendas militares, as nossas companheiras iam nos levar de comer e fazer-nos alguma companhia. Confraternizarmos com as pessoas que nos iam prestar o seu apoio, tanto ali como nos estúdios. Sentia-me muito pior ali (pelo factor do desconhecido) do que no meio das tabancas durante a noite convivendo com a população na Guiné. As instalações do Emissor e área circundante estava pejada de indivíduos de uma infantil doença de “revolucionarite”. Circulavam algumas armas pessoais (?) e os reais membros da RR cada vez mais se estabeleciam nos estúdios da R. Capelo, contaminados pelo vedetismo da época nas reportagens, sendo verdade que os acontecimentos políticos eram em catadupa. Houve algumas tentativas de passar os estúdios para as instalações do Emissor, mas havendo algumas resistências pessoais e de carácter técnico, não se concretizou. No Porto, a RR podia ter emissão diferente e autónoma. Ali os trabalhadores estavam mais controlados pelo Patriarcado. A ocupação da rádio começou em Lisboa e os colegas do Porto aderiram dois ou três dias depois, o que deu tempo aos serventes do Patriarcado tomarem as devidas providências. Em termos laborais e políticos nas instalações da RR, no Porto a situação definia-se clara e basicamente em pró ou contra o Patriarcado. Com o passar do tempo e muito próximo do fim, os trabalhadores na maioria, porque não viam as coisas muito claras aqui em Lisboa, começavam a “estabilizar-se patriarcalmente”.
Voltando a Lisboa. Começa-se a instalar a anarquia disfarçada de agitação, perde-se alguns dos objectivos, sendo o mais importante a R Renascença ser na prática (e de forma inequívoca ficou demonstrado a sua utilidade social), uma via aberta e livre para os trabalhadores e população em geral. Com o evoluir dos acontecimentos dentro dos quartéis, reuniões de patentes militares, a criação de correntes militares nos (e dos) diversos ramos, o surgimento de correntes (ditas) revolucionárias (só deus e odiabo sabiam quem eram); levou a que os trabalhadores da RR no realizar das suas tarefas principalmente jornalísticas, se viessem a enredar (no mínimo sentimentalmente) com a situação político-militar. Era manifesta a confusão no realizar de tarefas jornalísticas. Já se via golpes e contra-golpes militares todos os dias. Portanto, a “anarquia” (desorientação e/ou incapacidade) na sua própria organização os trabalhadores da emissora sem o saberem e a par do que se desenvolvia nas instalações do Emissor em Benfica, estavam a criar todas as condições (a par de outras que se desenrolavam em todo o território) para o golpe que viria a alterar por completo o futuro deste país. O 25 de Novembro. Digo “estavam” porque com a RR emitindo, não haveria nenhum comando Jaime Neves ou futuro breve presidente Ramalho Eanes que tivesse levado à prática o 25 de Novembro. Ou seja a “intelligence” deste país com o comando ou orientações de outros organismos similares criaram as infiltradas condições para que os Emissores da Rádio Renascença fossem destruídos à bomba por tropa especial. Foi a acção militar prévia e necessária para o desenrolar do 25 de Novembro pouquíssimos dias depois.” Obrigado pela vossa atenção e leitura. Um abraço. Carlos Filipe Agosto, 2010
Texto que me foi enviado pelo Carlos Filipe a propósito de gravações e outras pérolas sobre a luta ma RR